Direitos individuais na gênese do pensamento constitucional brasileiro : a Constituição de 1824
Resumo
Resumo: Esta investigação trata da formação do pensamento jurídico-constitucional brasileiro a partir da deflagração do processo constituinte, no período pós- independência, até o Ato Adicional de 1834, sob o enfoque de um dos pilares do constitucionalismo moderno: os direitos individuais. Possui como objetivo destrinchar os elementos que constituem os pressupostos teóricos desse processo formativo. Para tanto, demonstra que traços da filosofia iluminista, que começaram a ingressar no Brasil a partir do final dos setecentos, contribuíram fortemente para a deflagração do processo de transformação de direitos naturais em direitos civis e políticos, positivados numa Constituição. Focando na construção de uma cultura constitucional no Brasil na primeira metade do século XIX, e buscando problematizar alguns de seus aspectos jurídicos, esta pesquisa pretende contribuir para a ampliação do conhecimento do fenômeno constitucional brasileiro enquanto fenômeno jurídico, comumente mais estudado nesse período sob o enfoque de sua complexidade política. Como no período havia uma ampla circulação e intercambiamento de ideias no cenário internacional, o nascimento de uma cultura de direitos individuais e o projeto de construção de um ordenamento jurídico de modelagem moderna são compreendidos sob a chave das traduções culturais. Buscou-se, pois, esclarecer como as categorias "constituição moderna" e "direitos individuais" foram recebidas e traduzidas para a realidade experiencial brasileira, no processo de elaboração de um pensamento constitucional nacional. Considerando a escassez de obras jurídicas no período, tomaram-se como fontes históricas um rol diversificado de documentos, visando à identificação do Direito também num cenário de iure constituendo. Assim, são fontes da pesquisa alguns periódicos da imprensa, selecionados a partir de 1821, o texto positivado da Constituição de 1824, os Anais da Assembleia Constituinte de 1823, obras jurídicas do período que tenham relação com a temática e algumas leis esparsas. A análise das fontes, que foi dividida em período pré-constitucional (1821-1822) e período constitucional (1823-1834), demonstrou que uma cultura constitucional efetivamente nascia no período e com ela uma nova linguagem de direitos. Do texto da Constituição outorgada observa-se que, em meio ao paradoxo da sobrevivência de institutos do antigo regime, como os estatutos pessoais excludentes de escravizados, mulheres e indígenas, o título que trata dos direitos civis e políticos é marcadamente liberal, identificando-se uma estreita correspondência com as declarações de direitos revolucionárias. Na linha das traduções culturais, utilizaram-se nesta pesquisa os parâmetros arquetípicos dos modelos de direitos e liberdades de Maurizio Fioravanti, com o escopo de identificar se havia alguma proximidade entre o modelo de direitos e liberdades que deflagrou o processo de construção do pensamento constitucional brasileiro e os modelos dos países pioneiros, Inglaterra, França e Estados Unidos, em suas vertentes historicista, contratualista e estatalista, identificadas por Fioravanti. Ao final do trabalho, algumas conclusões foram alcançadas: o movimento iluminista manifestou-se no Brasil de modo peculiar, permitindo o ingresso no país de noções de liberdade e igualdade ainda no final do século XVIII; a partir de 1821, com a ampliação da liberdade de imprensa os temas dos direitos do homem e da constitucionalização do país passaram a ser recorrentes na imprensa periódica; o uso reiterado dos termos "direito" e "direitos", em sua acepção moderna, foi verificável em todo o período de funcionamento da Assembleia Nacional Constituinte de 1823; a abolição da escravidão, no entanto, não foi considerada como projeto político ou jurídico; com a entrada em vigor da Constituição, controvérsias mais marcadamente políticas tomaram os periódicos analisados, mas o tema dos direitos do homem e da constitucionalização mantiveram-se presentes; conclui-se da leitura analítica das fontes históricas que o pensamento constitucional em formação se inclinava para um estatalismo liberal com elementos de historicismo, que se distanciou do contratualismo individualista francês; as teorias de Benjamin Constant na defesa do equilíbrio e da estabilidade institucional e as críticas de Edmund Burke aos excessos da Revolução Francesa prevaleceram no Brasil como base de um pensamento constitucional moderado e fundado no princípio monárquico de legitimação do poder; essa formulação se aproximou do constitucionalismo restauracionista francês do século XIX; no âmbito dos estatutos jurídicos excludentes, se a mulher, o negro escravizado e o indígena não integravam nenhum dispositivo expresso da Constituição jurídica do Estado, integravam a constituição social ou empírica, numa condição hierarquizada e inferiorizada; no ambiente histórico em que o monismo estatal pretendia demarcar um espaço de exclusividade, esta constatação convida a uma reflexão sobre a tendência da modernidade jurídica de limitação das fontes do direito; por outro lado, a normatividade constitucional, que conformava novas compreensões da realidade deflagrou um processo sem volta de abertura do campo jurídico para inéditas experiências, ainda que marcadas pela complexidade e pela ambiguidade; noções de direitos, liberdade e igualdade circulavam com desenvoltura e influenciariam as movimentações sociais e algumas transformações jurídicas nas próximas décadas Abstract: This study examines the formation of Brazilian constitutional-legal thought from the inception of the constituent process in the post-independence period through to the Additional Act of 1834, with a focus on one of the foundational pillars of modern constitutionalism: individual rights. It seeks to elucidate the theoretical underpinnings that shaped this formative process, arguing that Enlightenment philosophy—introduced to Brazil in the late 18th century—played a pivotal role in the transformation of natural rights into civil and political rights, formally enshrined in constitutional text. The research concentrates on the emergence of a constitutional culture in early 19th-century Brazil, aiming to critically engage with its juridical dimensions. It contributes to broadening the understanding of the Brazilian constitutional phenomenon as a legal—not merely political—development. In light of the transnational circulation of ideas during this period, the rise of a culture of individual rights and the project of constructing a modern legal order are analyzed through the lens of cultural translation.The study investigates how the categories of "modern constitution" and "individual rights" were appropriated and translated within the Brazilian experiential context during the formation of national constitutional thought. Given the scarcity of legal literature at the time, a diverse corpus of historical documents was employed as primary sources, including periodicals from 1821 onward, the 1824 Constitution, the Annals of the 1823 Constituent Assembly, relevant legal works, and selected statutes, allowing the identification of juridical discourse in a de iure constituendo context. Dividing the analysis into pre-constitutional (1821 1822) and constitutional (1823-1834) phases, the study demonstrates the genesis of a constitutional culture and a novel rights-based discourse. The 1824 Charter— granted amidst remnants of the ancien régime, such as exclusionary personal statutes affecting enslaved individuals, women, and Indigenous peoples— nonetheless displays a markedly liberal character in its section on civil and political rights, echoing revolutionary declarations. Utilizing Maurizio Fioravanti’s typology of rights and liberties models—historicist, contractualist, and statist—the research assesses affinities between the Brazilian case and pioneering constitutional models in England, France, and the United States. Several key conclusions emerge: Enlightenment ideals penetrated Brazil in a unique manner, introducing notions of liberty and equality in the late 18th century; from 1821, press liberalization enabled recurring debates on human rights and constitutionalism; the modern usage of the terms "right" and "rights" became widespread during the 1823 National Constituent Assembly; yet slavery’s abolition was absent from political and juridical agendas. Following the Constitution’s enactment, political controversies dominated the press, though the discourse on rights and constitutionalism persisted. The analysis indicates a formative constitutional thought oriented toward liberal statism, informed by elements of historicism and distancing itself from French individualist contractualism. The constitutional ideas of Benjamin Constant—emphasizing institutional equilibrium —and Edmund Burke’s critique of revolutionary excesses shaped a moderate Brazilian constitutionalism grounded in monarchical legitimation. This configuration bears resemblance to 19th-century French restorationist constitutionalism. Although women, enslaved Black individuals, and Indigenous peoples were excluded from the Constitution’s formal provisions, they were nonetheless incorporated into the social or empirical constitution in subordinated and hierarchical terms. In a context marked by state monism and its aspiration for exclusive legal authority, such exclusion invites reflection on the modern juridical tendency to narrow the sources of law. Conversely, constitutional normativity inaugurated a transformative process that expanded the legal field to accommodate novel and complex socio-legal experiences. Circulating conceptions of rights, liberty, and equality would continue to influence socio-political mobilizations and legal transformations in subsequent decades Riassunto: Lo studio analizza la formazione del pensiero giuridico-costituzionale brasiliano dal periodo post-indipendenza fino all’Atto Addizionale del 1834, con enfasi sui diritti individuali come fondamento del costituzionalismo moderno. L’obiettivo è identificare i presupposti teorici del processo costituente, mettendo in luce l’influenza del pensiero illuminista, penetrato in Brasile alla fine del XVIII secolo, nella trasformazione dei diritti naturali in diritti civili e politici, poi inseriti nella Costituzione del 1824. La ricerca utilizza fonti storiche eterogenee, tra cui periodici dell’epoca (a partire dal 1821), il testo costituzionale del 1824, gli atti dell’Assemblea Costituente del 1823, alcune opere giuridiche coeve e leggi sparse, permettendo l’analisi del diritto in una prospettiva de iure constituendo. L’analisi è divisa in due fasi: periodo pre-costituzionale (1821-1822) e costituzionale (1823-1834). I risultati indicano la nascita di una cultura costituzionale e di un nuovo linguaggio dei diritti. Nonostante la presenza di istituti dell’ancien régime nella Costituzione del 1824, la sezione relativa ai diritti civili e politici presenta un’impronta liberale. L’uso diffuso e moderno dei concetti di "diritto" e "diritti" è riscontrabile soprattutto durante i lavori dell’Assemblea del 1823. Tuttavia, la questione dell’abolizione della schiavitu non è stata affrontata come progetto politico o giuridico. Le teorie di Benjamin Constant e le critiche di Edmund Burke agli eccessi della Rivoluzione francese hanno influenzato la costruzione di un pensiero costituzionale moderato in Brasile, fondato sul principio monarchico e vicino al costituzionalismo restaurazionista francese. Si conclude che donne, schiavi e popolazioni indigene, pur esclusi dalla Costituzione giuridica, facevano parte della costituzione sociale, in posizione subordinata. La normatività costituzionale ha avviato un processo irreversibile di apertura del campo giuridico a nuove esperienze, che influenzeranno trasformazioni sociali e giuridiche nelle decadi successive.
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