Crime de desacato e classes sociais em Curitiba (2021)

Abstract

Resumo: A investigação sobre o crime de desacato (ou desrespeito à autoridade), com foco nas ocorrências envolvendo policiais militares, parte de uma perspectiva marxista e crítica do direito. Está delimitada espacialmente ao município de Curitiba e temporalmente ao período de 2018 a novembro de 2024 (para ocorrências preliminares) e ao ano de 2021 (para processos com trânsito em julgado). O desacato confere proteção especial à "honra" da administração pública, mesmo em situações em que o agente estatal acumula as funções de vítima, testemunha e condutor da prisão. Isso leva à pergunta central da investigação: indivíduos de quais classes sociais são efetivamente processados e condenados por crime de desacato a policiais militares em Curitiba? A hipótese é que o crime de desacato opera como ferramenta seletiva de contenção social, voltada especialmente ao lumpemproletariado, funcionando como um "super trunfo" penal para repressão das classes consideradas perigosas. Justifica-se a pesquisa pela escassez de estudos sobre o tema e pela relevância de compreender como formas jurídicas aparentemente neutras contribuem para a reprodução da dominação de classe. Os objetivos da pesquisa incluem: (i) estudar o surgimento e as funções não declaradas da polícia no capitalismo; (ii) discutir a criminalização da pobreza; (iii) examinar o patrulhamento da Polícia Militar do Paraná e a lógica espacial de suas unidades; (iv) evidenciar a seletividade do sistema penal. A metodologia adotada baseia-se em análise documental, produção de mapas com o software QGIS, estudo de processos judiciais com trânsito em julgado, cruzamento de dados institucionais da PMPR com indicadores demográficos, estatísticas criminais e localização de áreas de favelas. A análise estatística fundamenta-se em fontes oficiais e permite a correlação entre patrulhamento ostensivo e vulnerabilidade social. No aspecto teórico, a pesquisa ancora-se no referencial marxista, entendendo o Estado como relação social de dominação de classe, mediada pela burocracia. Examina-se a constituição histórica da polícia como instituição voltada à repressão do modo de vida proletário e a evolução dos regimes de acumulação capitalista até sua forma atual, neoliberal, que combina precarização da vida, criminalização da pobreza e intensificação da violência policial. São mobilizados conceitos como direito penal do inimigo e tolerância zero para demonstrar a racionalidade punitiva que orienta o aparato repressivo. Os resultados da pesquisa indicam que o patrulhamento da PMPR em Curitiba não responde a critérios técnicos ou à neutralidade institucional, mas reflete interesses de proteção do capital e de controle do lumpemproletariado. A análise dos 26 processos com condenações definitivas por desacato em 2021 confirma a seletividade penal. O perfil dos réus condenados é marcadamente vulnerável. Conclui-se que o crime de desacato é um instrumento jurídico de manutenção da ordem capitalista, operando como engrenagem de controle social que visa silenciar os "indesejáveis" e disciplinar indivíduos das classes inferiores. O patrulhamento policial, em suas formas de aprisionamento, eliminação e proteção seletiva, evidencia a racionalidade burguesa por trás da política de segurança pública. Ao transformar a crítica à autoridade em delito, o Estado assegura a reprodução da desigualdade social e a continuidade de sua hegemonia

Abstract: The investigation into the crime of contempt (or disrespect of authority), with a focus on incidents involving military police officers, is grounded in a Marxist and critical legal perspective. It is spatially limited to the municipality of Curitiba and temporally defined as the period from 2018 to November 2024 (for preliminary occurrences) and the year 2021 (for cases with final judgments). Contempt grants special protection to the "honor" of public administration, even in situations where the state agent simultaneously assumes the roles of victim, witness, and arresting officer. This leads to the central question of the research: individuals from which social classes are actually prosecuted and convicted for the crime of contempt against military police officers in Curitiba? The hypothesis is that contempt functions as a selective tool of social control, particularly targeting the lumpenproletariat, serving as a "wild card" of penal repression against the so-called dangerous classes. The research is justified by the scarcity of academic studies on the topic and by the relevance of understanding how seemingly neutral legal forms contribute to the reproduction of class domination. The objectives of the study include: (i) examining the emergence and undeclared functions of the police under capitalism; (ii) discussing the criminalization of poverty; (iii) analyzing the patrolling practices of the military police of Paraná (PMPR) and the spatial logic of its units; and (iv) highlighting the selectivity of the penal system. The adopted methodology is based on document analysis, map production using QGIS software, the study of court cases with final judgments, and the cross-referencing of institutional data from the PMPR with demographic indicators, crime statistics, and the location of favela areas. Statistical analysis relies on official sources and enables correlations between ostensive policing and social vulnerability. Theoretically, the research draws on the Marxist framework, understanding the state as a social relation of class domination mediated by bureaucracy. It examines the historical formation of the police as an institution aimed at repressing proletarian ways of life and the evolution of capitalist accumulation regimes to their current neoliberal form, which combines the precarization of life, the criminalization of poverty, and the intensification of police violence. Concepts such as the penal law of the enemy and zero tolerance are employed to demonstrate the punitive rationality that guides the repressive apparatus. The research findings indicate that PMPR’s patrolling in Curitiba does not follow technical criteria or institutional neutrality but instead reflects interests in capital protection and control over the lumpenproletariat. The analysis of 26 cases resulting in definitive contempt convictions in 2021 confirms the penal system's selectivity. The profile of convicted defendants is markedly vulnerable. The study concludes that the crime of contempt is a legal instrument for maintaining capitalist order, operating as a mechanism of social control aimed at silencing the "undesirables" and disciplining individuals from the lower classes. Police patrolling — through imprisonment, elimination, and selective protection — exposes the bourgeois rationality underlying public security policy. By transforming criticism against authority into a criminal offense, the state guarantees the reproduction of social inequality and the continuity of its hegemony