Agricultura tradicional e relações socioecológicas na construção dos modos de produção e cooperação nos Quilombos da Barra do Turvo (SP)
Abstract
Resumo: A diversidade do mundo rural brasileiro é (re)conhecida e valorizada muito aquém da relevância que representa em termos sociais, ambientais e alimentares. Um conjunto de modalidades de produção e estilos de vida são invisibilizados e suas experiências desperdiçadas como aprendizados de modos mais ecológicos e comunitários de produção e abastecimento alimentar. Os quilombos rurais são experiências seculares de ex-escravos que buscaram uma terra para tirar o sustento e viver; organizaram-se a partir de relações de parentesco e enraizamento ao lugar, formando comunidades e territórios libertos e autogestionados. A pesquisa procurou identificar e analisar como são construídas e reproduzidas as práticas e conhecimentos ecológicos e agrícolas no quilombo Ribeirão Grande-Terra Seca (município de Barra do Turvo, região do Vale do Ribeira, SP) a partir das relações produtivas, comunitárias e de cuidado dos bens comuns. O estudo procurou discutir as questões da realidade tendo como referência o pensamento decolonial, apoiando-se no diálogo de saberes e nas racionalidades socioecológicas que se constituem a partir dos territórios. Buscamos analisar as práticas e saberes que fundamentam a agricultura quilombola e o modo de gestão comum dos bens em diálogo com as práticas e relações de reciprocidade e da abordagem agroecológica. Neste sentido, discutiu-se os conflitos e avanços nas relações da comunidade com a questão ambiental a partir da criação de unidades de conservação e com a promoção da agrofloresta por meio de agentes externos. Metodologicamente, procurou-se combinar recursos etnográficos, mediante a observação direta junto às práticas produtivas e socioecológicas cotidianas, com entrevistas semiestruturadas com famílias e lideranças do quilombo RGTS. Complementarmente e para articular a experiência ao contexto quilombola da região, foram realizadas visitadas e entrevistas pontuais com lideranças de quilombos do entorno, além de um mediador social como informante-chave. As observações e análises demonstraram a relevância da identidade quilombola na resistência em abandonar a prática tradicional da coivara como componente de sua agricultura, assim como ficou evidenciada a articulação de seu sistema agrícola com a gestão comum dos bens naturais e construídos. As práticas de ajuda mútua no trabalho, nos intercâmbios de produtos e sementes e na construção e uso de benfeitorias se mostraram como estratégias fundamentais de reciprocidade na sustentação dos modos de produção e cooperação no quilombo. Esse conjunto de práticas socioecológicas, em geral, têm origem na ancestralidade, nos aprendizados incorporados desde a infância, pelo exemplo e valores transmitidos no espaço da família e da comunidade. Identificamos, assim, o habitus como uma disposição social importante na coesão e dinâmica como grupo social. Conviver e partilhar da experiência nos proporcionou observar e (re)conhecer as práticas e percepções dos sujeitos sociais em seus modos de existência material intimamente relacionados com a compreensão de uso e cuidado do território-natureza visando garantir as condições para sua reprodução social, ecológica e cultural. De um modo geral, apreende-se uma agricultura e uma gestão territorial voltadas para o bem comum e assentadas em uma racionalidade ambiental. Trata-se de uma racionalidade própria, com considerável grau de criação e recriação local, que concilia a identidade com as demandas 'atualizadas' da comunidade; e parcela dos agentes e instituições que se relacionam com o quilombo carecem compreender melhor tal lógica. É neste contexto que a troca de experiências e o diálogo de saberes, a que este trabalho pretende contribuir, merecem ser potencializados para que tanto as comunidades quilombolas quanto a sociedade tenham perspectivas mais promissoras no sentido da sustentabilidade e da construção de mundos pós-coloniais. Abstract: The diversity of the Brazilian rural world is recognized and valued far below the relevance it represents in social, environmental and food terms. A set of production modalities and lifestyles are made invisible and their experiences wasted, such as learning about more ecological and communitarian modes of food production and its supply. Rural quilombos are centuries-old experiences of former slaves who sought land to support themselves and live; they organized themselves based on kinship and settling the local space, forming free and self-managed communities and territories. The research sought to identify and analyze how ecological and agricultural practices and knowledge are constructed and reproduced in the Ribeirão Grande- Terra Seca (RGTS) quilombo (municipality of Barra do Turvo, in the Ribeira Valley region, state of São Paulo) based on productive, community and care of common goods relationships. The study sought to discuss real issues having decolonial thinking as a reference, relying on the dialogue of knowledge and socioecological rationales that are constituted from the territories. We seek to analyze the practices and knowledge that underlie quilombola agriculture and the common management of goods in dialogue with practices and relationships of reciprocity and the agroecological approach. In this sense, conflicts and advances in community relations with the environmental issue were discussed in relation to the creation of conservation units and the promotion of agroforestry through external agents. Methodologically, an attempt was made to combine ethnographic resources, through direct observation along with daily productive and socio-ecological practices, with semi-structured interviews with families and leaders of the RGTS quilombo. Complementarily and to articulate the experience to the quilombola context of the region, specific visits and interviews were carried out with leaders of the surrounding quilombos, in addition to a social mediator as a key informant. The observations and analysis demonstrated the relevance of the quilombola identity in the resistance to abandon the traditional practice of "coivara" (slash-and-burn) as a component of their agriculture, as well as the articulation of their agricultural system with the common management of natural and manmade assets. The practices of mutual help at work, the exchange of products and seeds and the construction and use of improvements proved to be fundamental strategies of reciprocity in sustaining the modes of production and cooperation in the Quilombo. This set of socioecological practices, in general, originates from ancestry, from learning experiences incorporated since childhood, through examples and values transmitted in the family and community space. Thus, we identified the habitus as an important social disposition in cohesion and dynamics as a social group. Living together and sharing the experience allowed us to observe and recognize the practices and perceptions of social subjects in their material modes of existence closely related to the understanding of the use and care of the territory-nature, aiming to guarantee the conditions for its social, ecological and cultural reproduction. In general, agriculture and territorial management are perceived as geared towards the common good and based on an environmental rationale. It is a rationality of its own, with a considerable degree of local creation and recreation, which reconciles identity with the 'updated' demands of the community; part of the agents and institutions that relate to the quilombo need to better understand this logic. It is in this context that the exchange of experiences and the dialogue of knowledge, to which this work intends to contribute, deserve to be enhanced so that both quilombola communities and society have more promising perspectives towards sustainability and the construction of post-colonial worlds.
Collections
- Teses [92]